Ele entrou pontualmente em seu ambiente de trabalho, como sempre.
Homem preparado para o desafio que lhe apresentaram na época, num passado distante, muito distante mesmo.
Experiente, equilibrado, inteligente e capaz.
Pessoa preparada, com o poder de mudar uma vida e que sempre facilitou o acesso a um futuro melhor.
Todos os dias ele acordava bem cedo – sem reclamar –, e partia para executar suas funções diárias, com a retidão de sempre, mesmo tendo pouca receptividade e muitas vezes sendo desprezado.
Como todos os dias, durante anos, mais uma vez comparecera para o trabalho – seu chamado –, e mesmo sendo intimado e humilhado por seu público carente e necessitado, ele já sem a mesma garra, determinação e disposição de outros tempos, ainda carregava em seu interior o forte desejo, ou melhor, a esperança de transmitir algo positivo. Porém, aquele seria seu último dia, sua última aula e oportunidade de tentar lançar alguma pérola para seus “porquinhos atrapalhados”.
Ele era conhecido no passado como o querido Professor, mas os anos passaram, a qualidade daquela escola pública foi caindo, caindo e caindo.
Corpo docente, alunos, salário e tudo o que movimentava aquele mundo do despertar e ascender mentes estava igualmente deteriorado.
Uma maldade rasteira consumia as oportunidades e as relações humanas, aquele que era e deveria ser reverenciado como o grande Mestre, o Sr Professor, passou a ser conhecido apenas como… um Tio aí.
Alunos de todas as épocas sempre tiveram aquele aspecto rebelde bastante natural de suas idades, por isso, ter sua autoridade desafiada e constantemente questionada sempre fora o desafio de sua profissão, mas era aquele algo a mais que o impulsionava a continuar. Sempre houvera, por parte de seus alunos, uma necessidade de saber, de querer entender o desconhecido e o desejo sincero de melhorar a cada dia, mesmo que, no decorrer dos anos, este aspecto tivesse diminuído drasticamente. Isso era o que o destruía por dentro, ao ponto de não conseguir mais identificar aquela luz especial nos olhinhos de seus pupilos.
Seus métodos, o desejo profundo de guiar e direcionar já não tinham muito sentido há um certo tempo. Sua própria luz havia se apagado, mesmo não querendo admitir.
Aquele caminho apático e mecânico com que passara a caminhar, tornou-se uma constante. Ele não queria que fosse a realidade, a verdade absoluta em quase todas as escolas que conhecia, mas tudo indicava que a moda era aquela e ponto final. Aparentemente alguma coisa parecia administrar as consciências, ordenando ao consciente coletivo: seja mau!
Ele parou por um segundo na porta de sua classe e admirou seus futuros ex-alunos e ao reparar a postura pouco amigável que, invariavelmente, encontrava em relação à sua presença, apenas lamentou em silêncio e adentrou sem maiores reprovações e discursos apaixonados de outrora, cheios de moral, incentivos e o desejo profundo de atiçar o brio das figuras.
Algo carregava o sentimento humanitário, a bondade, o equilíbrio das crianças e nada demonstrava os despertar daquele transe.
Desdém, desprezo, risos sarcásticos, atitudes violentas e postura decadente, menos o respeito e a admiração de outrora.
Ele, um homem brilhante, culto e a melhor fonte de todos os conhecimentos, um portal, um trampolim para um mundo melhor para aquelas crianças, estava acuado e reduzido a “Um Tio aí”!
Era seu último dia, mas ninguém sabia e nem deseja saber.
Poderia ter se despedido e deixado uma mensagem de Amor e Esperança, mas a barreira de ser apenas um “Tio aí” os colocavam distantes demais. Eram surdos, mudos e cegos demais para entenderem.
Nem sequer sentou em sua mesa para tentar fazer a chamada do dia. Não disse palavra, somente lembrava da frase: Pérolas aos porcos! Esta era a única coisa que se passava em sua mente naquele momento. Aquela que fora uma mente incrível, agora cansada e sem a Luz do passado.
Deu as costas para a “classe” e imediatamente sentiu um papel amassado bater em seu ombro, seguido de uma risada debochada e maldosa, partida do seu “querido” público.
Ali, cansado, oprimido, algumas palavras vinham e justificavam as ações dos seus alunos rebeldes: deficitárias, desinteressadas, atrapalhadas, pessoas sem rumo e dignas de dó.
Apagou a lousa pela última vez, na mesma onde já escrevera animado os grandes nomes da humanidade – de sua humanidade em particular –, ali jaz perdida, arrancada por seres que já foram chamados carinhosamente de alunos, pupilos, o futuro…
Até citou baixinho, quase inaudível, alguns deles para si mesmo, suas eternas inspirações, Mestres e “Amigos” de muitos e muitos anos: Fernando Pessoa, Machado de Assis, Quintana, Cecília, Drummond, Graciliano, Clarice, etc, etc e etc…
Respirou fundo, pegou um giz, já um pouco trêmulo e cansado. Com grande dor no coração e diante de sua derrota final, escreveu com letras graúdas e bem claras a sua cruel despedida:
Quem é você? Ninguém!
Um nada no meio do nada.
És coisa nenhuma, sem futuro!
Lamento…
Entristeceu por admitir sua derrota, enxugou discretamente uma lágrima e… partiu.
Sem aplausos, reconhecimentos, atenção… sem adeus!
Sílvia Souza disse:
Mesmo sabendo que essa é a realidade da educação no Brasil, eu sou da opinião que se conseguirmos tocar a vida de uma pessoa que seja e transformá-la para melhor, já estamos cumprindo nosso papel…
Eu sei que desanima… muito…
Mas não consigo pensar em desistir de deixar algumas sementinhas…
Ótimo texto!
M.Raydo disse:
Sim, Silvia! Com certeza não devemos desistir de dar o nosso melhor. Mas, confesso estar um pouco desencantado com os rumos que a molecada tem tomado! Algo deveria ser feito para que todos conseguíssemos reavivar a Luz que há dentro de nós. O respeito, amor ao próximo e a certeza de que ao nos melhorarmos tudo à nossa volta melhorará também. Gostaria de nos ver como em países próximos, onde a luta não é tão árdua e o resultado é certeiro! Muito o que melhorar por aqui… e isto, cansa um pouco! 🙂
Sílvia Souza disse:
Eu concordo com você… E também desanimo…
Pra ser sincera, em muitos momentos, acho que qualquer mudança pra melhor será impossível…
Estou na fase de tentar soprar essa brasa da esperança em mim, antes que ela apague de vez…
M.Raydo disse:
Ei! Peralá garota… também não é o fim, não é mesmo?! Tô puto? Tô! Mas, desistir NUNCA!!! Bora achar um motivo e algo que nos erga e faça feliz! Tô contigo nessa! Nada de desanimar de vez, né não?! 🙂
Alexandre Guilherme disse:
É triste. As coisas estão muito loucas, todo mundo maluco.
As escolas cada vez mais sendo um ambiente de guerra. Os alunos que mal sabem ler (e pouco se importam com isso).
E o professor como um redentor da humanidade?
Não!
Hoje em dia além do papelzinho costumam lançar cachorros e balas de borracha contra professores, costumam dizer que greve não existe (e se existe é injustificada).
Com tudo isso, talvez o caminho seja o da redução da maioridade penal mesmo. Afinal, quem é que se importante com a educação das crianças do país? Somente os professores. Pobres professores (em ambos sentidos).
M.Raydo disse:
Percebo que tudo por aqui tem que ser melhorado, Alexandre! A escola, óbvio, é a que está em primeiro plano, mas todas as áreas deste nosso país parecem estar capengas! Cansa? Pra caramba… mas, desistir não é a resposta! Dependemos de um governo duvidoso e contaminado! As duas pontas estão bem ruins… a de cima e a de baixo, então, como exigir um melhor comportamento das criancas?! Nossas referências são ruins, bem ruins! Não é pra hoje… quem sabe um dia?! Sim! Um dia pararemos de querer levar vantagem e a dividiremos. Assim, todos terão vantages e obrigações no mesmo nível e já não seremos esta barca furada! Valeu por comentar! Até! 🙂